Sara e a síntese
Há uns dias, servi a amigas ovos perfeitos. A expressão não é pretensão da cozinheira: refere-se a ovos preparados com um termocirculador, equipamento que mantém a temperatura da água constante e uniforme. Resultam gemas com consistência de quindim, impossíveis de obter na panela comum.
Uma das convidadas, química, me convidou depois da degustação a ajudá-la nos processos de síntese com os quais está envolvida no laboratório. Imagino que tenha sido um elogio (obrigada, Sara!): o reconhecimento da capacidade de escolha dos ingredientes –ovos caipiras, flor de sal e pimenta do reino moída na hora– e de controle de variáveis no seu preparo.
Isto porque também a síntese exige conhecimento e habilidade na escolha de elementos ou substâncias químicas, os precursores. A partir de algum processo de transformação –físico ou, na maior parte das vezes, químico–, esses precursores resultam em novos compostos, os produtos, com composição, estrutura e propriedades distintas das originais. Aqui, há um limite na analogia com o ovo, já que não escolhi os elementos presentes na clara ou na gema, apenas aproveitei o que a natureza fez.
A natureza, aliás, pode ser considerada o maior laboratório de síntese. “Na minha sala, vemos móveis de madeira, material feito pela natureza. Durante muito tempo, nossas roupas eram todas de tecidos naturais, linho, algodão, seda. Tudo isso é resultado de sínteses”, registra, para começo de uma conversa sobre o assunto, Elson Longo da Silva, professor emérito do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
“Em geral, a natureza ganha de 10 a 0 de nós. Até hoje não conseguimos, por exemplo, imitar as rolhas de cortiça, com todas as suas características. Podemos pensar também nas propriedades mecânicas incríveis das carapaças das tartarugas, nas estruturas dos corais, no mecanismo de camuflagem dos camaleões…”, acrescenta.
Voltando a laboratórios mais modestos, os processos de síntese podem aprimorar propriedades daquilo que já existe, ou resultar em materiais antes inexistentes. Outras vezes, o que se busca é produzir em larga escala compostos que, naturalmente, só existem em pequenas quantidades.
“Eu costumo chamar de novo material não só aquele que não existia, mas também o velho conhecido que foi descoberto para uma nova função. Em qualquer das duas situações, a síntese tem um papel central. É só a partir do material existente, que foi preparado por alguma rota sintética, que suas propriedades poderão ser testadas, e sua aplicação viabilizada. A síntese, portanto, é a gênese de tudo”, define Aldo Zarbin, professor titular do Departamento de Química da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
A síntese de novos materiais diz respeito, portanto, ao estabelecimento de uma relação entre função, propriedade, composição e estrutura. Zarbin pontua que toda matéria é um material em potencial. No material, uma ou mais propriedades têm funções.
Assim, para uma determinada aplicação –material para próteses ósseas, por exemplo–, é preciso estabelecer as propriedades desejadas, como leveza, resistência mecânica, biocompatibilidade. Depois, são identificados quais precursores, combinados em um determinado processo de síntese (rota), podem resultar na composição e, também, na microestrutura desejada, que diz respeito às ligações estabelecidas entre os átomos e ao seu arranjo espacial.
Estabelecer a melhor rota de síntese significa definir etapas a serem seguidas: aquecimento na água seguido de resfriamento rápido em banho de gelo, no caso do meu ovo. Exige, também, controlar as variáveis envolvidas: temperatura –65ºC– e tempo –60 minutos– no meu processo, certamente muitíssimo mais simples que aqueles enfrentados pela Sara no laboratório!
“O que nós gostaríamos de fazer? Pegar a matéria e transformar exatamente no produto em que temos interesse, como um alfaiate, sob medida. Mas, geralmente, este é um processo que acontece por tentativa e erro”, conta Longo.
A manifestação do pesquisador destaca como, apesar da relevância do conhecimento teórico e, mais recentemente, do apoio de ferramentas computacionais, a pesquisa experimental é o momento de revelação do sucesso ou fracasso da rota de síntese escolhida.
Produzir um novo material, no entanto, não obrigatoriamente se dá através de rotas sintéticas. “Sintetizar significa sair de moléculas simples e ir juntando as peças, como um Lego. A síntese é criar a partir de precursores diferentes. Isolar algo que já está em algum lugar é preparação, não síntese, por exemplo”, explica Zarbin.
Além disso, há uma outra etapa fundamental, o processamento. “De nada adianta ter um material com propriedades fantásticas que não pode ser processado ou incorporado em determinados produtos ou sistemas, para que essas propriedades sejam de fato úteis”, completa o pesquisador da UFPR.
Para o ovo, sugiro servir sobre um bom pão torrado –a versão oferecida a Sara– ou como ponto alto de uma tigela com molho de tomates e espinafre refogado.