Luz síncrotron permite rastrear impacto do desastre de Mariana no mar

Há cinco anos, na tarde de 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, Minas Gerais, matou 19 pessoas e deixou um rastro de lama com resíduos do processamento de minério de ferro que rapidamente chegou até a foz do Rio Doce, no litoral do Espírito Santo. Sete meses depois, em 16 de junho de 2016, a mancha marrom chegou a Abrolhos, importante –e sensível– ecossistema marinho brasileiro. Agora, já não é mais tão fácil ver os rejeitos, o que não significa que eles não estejam lá.

Pesquisa realizada por cientistas das universidades federais do Espírito Santo (UFES), Sul da Bahia (UFSB) e da Universidade de São Paulo (USP), usando equipamentos do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, permitiu estabelecer um marcador para rastreamento desse material em sedimentos de ambientes aquáticos –no leito do Rio Doce e no oceano– ao longo do tempo. Esse marcador –chamado de conjunto de minerais de ferro (IMS, do Inglês iron mineralogical set)– é uma espécie de assinatura, ou impressão digital, dos resíduos armazenados na barragem do Fundão antes do desastre.

“Eu não consigo saber a origem de um sedimento só de olhar para ele. Não são a cor, a textura ou a granulometria desse sedimento que me dão esta resposta. Mas outras análises sim. Na ciência forense, por exemplo, a análise do sedimento encontrado nas roupas de uma pessoa assassinada permite saber onde aquela pessoa foi morta, porque o sedimento tem a assinatura de um determinado local”, explica Marcos Tadeu Orlando, da UFES, um dos coordenadores da pesquisa. No CNPEM, os pesquisadores utilizam as chamadas linhas de luz síncrotron, em que este tipo de onda eletromagnética permite investigar a estrutura, a composição e as propriedades da matéria com muito mais precisão que o olho humano.

A composição elementar de sedimentos –isto é, a participação de diferentes elementos químicos no material analisado– pode ser feita em equipamentos relativamente simples, usando técnicas convencionais. No caso, nos rejeitos da chamada barragem do Fundão foram detectados majoritariamente ferro e silício, com níveis mais baixos de alumínio e traços de uma série de outros elementos.

No entanto, a chamada composição cristalográfica, relativa à estrutura que configura o marcador do minério processado pela Samarco em Mariana, só pôde ser determinada com precisão usando os equipamentos do CNPEM. Essa composição deriva da rocha de onde os minérios eram retirados pela Samarco –o itabirito, típico daquela região–, dos fluidos usados no processamento, da eficiência desse processamento e, também, do intemperismo sofrido pelo material durante o armazenamento na própria barragem.

Para caracterizar essa composição, os pesquisadores analisaram no CNPEM amostras de sedimentos coletados na área próxima à barragem logo após o rompimento e em diferentes pontos ao longo do Rio Doce, na sua foz e no oceano em diferentes momentos, desde antes do desastre até 2019. Com isso, puderam estabelecer o IMS, cujas fases cristalográficas majoritárias são os minérios de ferro hematita e magnetita, além de quartzo. Fases minoritárias contêm goethita e grennalita (também minérios de ferro) e um aluminossilicato.

“Nosso desafio era imenso justamente porque era muito difícil distinguir o sedimento coletado depois do rompimento daquele que estava no rio antes, já que havia características muito semelhantes. Por dois anos, a gente tentava separar e não conseguia. Quando a lama chega todo mundo vê, mas depois, quando assenta no solo, você não consegue mais distinguir com clareza o que já estava lá e o que chegou com o rejeito”, explica Orlando. “E esta é uma questão importante inclusive porque está envolvida em indenizações milionárias”, exemplifica o pesquisador.

A obtenção do marcador facilita, a partir de agora, o monitoramento em campo, permitindo a identificação inequívoca e o acompanhamento dos rejeitos em locais a centenas de quilômetros de Mariana, e mesmo depois de cinco anos. Outra conclusão importante da pesquisa é que, neste momento, ainda não é possível prever por quantos anos os resíduos continuarão presentes nesses ambientes e, assim, impactando a flora e a fauna.

A melhor compreensão deste impacto é, inclusive, o principal objetivo dos pesquisadores na continuidade do estudo, com a utilização do Sirius, novo acelerador do CNPEM. “Antes, nós não tínhamos o marcador, que agora permite o acompanhamento da presença dos resíduos nos sedimentos usando apenas as técnicas convencionais. Mas já temos outra questão. O marcador vai ficando mais diluído com o tempo e, também, é incorporado nos organismos, incluindo a microfauna e a microflora. Por isso, neste momento, o que a continuidade da pesquisa mais precisa é de novas análises que serão possibilitadas pelo Sirius”, conta Orlando.

“Os marcadores minerais não são, necessariamente, tóxicos, embora esta ainda seja uma questão em aberto. Mas, junto com esses minerais são arrastados elementos mais pesados e muito mais tóxicos, como mercúrio, arsênio, bromo e outros. Estes se acumulam ao longo da cadeia alimentar e causam danos celulares. Conseguir enxergar, junto aos minerais, a presença desses elementos, é o próximo passo que queremos dar”, afirma Douglas Galante, coordenador da estação experimental Carnaúba no Sirius.

“A Carnaúba é, basicamente, um gigantesco microscópio de raios X, que permite ver o que o olho humano não enxerga, com a luz visível. Por exemplo, a presença de metais pesados, de elementos tóxicos, no interior dos tecidos e das células. Será possível, em breve, produzir imagens 2D ou 3D da presença desses elementos tóxicos dentro dos organismos, mas também nas rochas e no sedimento, fazer mapas para entender exatamente onde está cada um desses elementos”, explica Galante. “Em alguns microrganismos que acumulam esses elementos na sua carapaça, por exemplo, será possível acompanhar a saúde do oceano ao longo do tempo, como quando analisamos a idade de uma árvore por seus anéis. A resolução espacial à qual estamos chegando na Carnaúba é uma das mais altas em todo o mundo, e esperamos bater vários recordes mundiais aqui no Sirius”, conclui o pesquisador.

Os resultados da pesquisa que estabeleceu o marcador estão no artigo “Tracing iron ore tailings in the marine environment: An investigation of the Fundão dam failure” (Rastreando rejeitos de minério de ferro no ambiente marinho: uma investigação da falha da barragem do Fundão), publicado em outubro na revista científica Chemosphere.