Processos que mantêm a vida podem apoiar matriz energética sustentável

A natureza é inspiração de desenvolvimentos tecnológicos em todas as áreas e, com muita frequência, de novos materiais. Em Sínteses, já vimos como a transpiração humana e de outros animais inspirou o uso de hidrogel para resfriamento de robôs flexíveis e conhecemos a busca por um material tão resistente quanto o ouriço da castanha do Pará.

Nestes exemplos, embora se busque reproduzir soluções presentes em organismos vivos, o caminho para tentar chegar aos mesmos resultados é completamente diferente dos processos naturais.

No nosso Universo, tudo tende ao equilíbrio ou, como registra a chamada Segunda Lei da Termodinâmica, ao nível máximo de entropia (frequentemente descrita como grau de desordem, ou desorganização, de um sistema) e, por consequência, mínimo de energia. No entanto, para um ser vivo, o equilíbrio significa a morte. Como ninguém quer atingir este equilíbrio, ou seja, o momento em que a energia chega ao seu nível mínimo, nós e os animais, por exemplo, nos alimentamos, recebendo assim matéria com alto teor energético.

Na síntese convencional de materiais ou outras substâncias, o processo quase sempre é feito de forma consecutiva, passo a passo, objetivando a chegada ao equilíbrio. Juntamos A e B para produzir C, em uma reação que segue até que as três espécies químicas (A, B e C) estejam em equilíbrio. Depois, pegamos C, já mais complexo, e misturamos com D, para chegar a E, novamente em equilíbrio. E assim por diante, até termos o hidrogel para resfriamento do robô ou um material de construção tão resistente quanto a castanha do Pará.

Porém, em condições fora do equilíbrio, a síntese pode acontecer com todas as reações simultaneamente. Por exemplo, a interação entre A e B pode resultar no dobro de B, em um fenômeno conhecido como autocatálise, que descreve um aumento da concentração de B pela sua própria formação. Se também estiver presente uma etapa de inibição –a reação de B com C, por exemplo–, o crescimento de B pode ser freado, com escalas de tempo diferentes e, assim, oscilação na concentração de B, com momentos de maior ou menor produção. Essas oscilações levam, dentre outras consequências, a padrões e estruturas na matéria –como espirais, poros, dendritos e organizações multicamadas– muito mais complexos que os obtidos na síntese convencional.

Na natureza, este tipo de estruturação auto-organizada é onipresente, indicando que oscilações em processos naturais são muito comuns. Como estrutura e propriedades de diferentes materiais estão intimamente relacionadas, os pesquisadores têm buscado compreender melhor esses mecanismos, com o objetivo de empregá-los na obtenção de novos materiais com composição e estrutura complexas e, assim, propriedades físicas e químicas que atendam às necessidades tecnológicas mais urgentes.

No Brasil, o Laboratório de Dinâmica Eletroquímica e Conversão de Energia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) estuda há cerca de quatro anos a síntese eletroquímica auto-organizada com o objetivo de obter, no futuro, materiais para transformações na nossa matriz energética rumo a configurações mais sustentáveis. Materiais para aplicação, por exemplo, em dispositivos como células a combustível, baterias e sensores.

“A termodinâmica clássica foi muito estudada, as coisas funcionam, temos capacidade de previsão, mas só em condições de equilíbrio. E o equilíbrio é um pouco sem graça”, resume Raphael Nagao, professor do Instituto de Química da Unicamp. “É natural que façamos primeiro a parte mais simples. Mas um universo de possibilidades existentes entre o começo da reação e o equilíbrio fica de fora, e é nessas possibilidades que estamos interessados”, complementa, ao comentar as pesquisas que o grupo realiza com dispositivos eletroquímicos.

Dispositivos eletroquímicos muito conhecidos são as pilhas e baterias, nos quais o interesse maior está na corrente elétrica gerada pelo transporte de cargas (elétrons) entre os polos negativo e positivo (eletrodos) através de uma solução (eletrólito). Porém, além da corrente, as reações de redução (ganho de elétrons) e oxidação (perda) que acontecem nestes dispositivos levam à deposição ou à dissolução de materiais sobre os eletrodos. A deposição eletroquímica está, por exemplo, por trás dos processos que conhecemos como niquelação, galvanização e cromagem, comuns na indústria automobilística.

Comumente, a obtenção de materiais por deposição ou dissolução eletroquímica é feita em uma abordagem mais convencional, em que oscilações nas variáveis principais, como corrente e potencial, são indesejadas e, portanto, evitadas.

O objetivo dos pesquisadores que têm trabalhado com auto-organização é compreender melhor o que acontece fora do equilíbrio e verificar como controlar com precisão e racionalizar o crescimento de padrões e estruturas. Nagao cita o exemplo de materiais a base de cobre, essenciais à redução do CO2 (a reação química, não a diminuição da quantidade, embora uma coisa leve à outra). Essa reação de redução visa a transformação do gás causador de efeito estufa em combustíveis e produtos químicos de alto valor agregado.

“Nós conhecemos alguns sistemas eletroquímicos que permitem a manipulação da estruturação de cobre e óxido de cobre. Nossa ideia é fazer a síntese destes materiais de forma auto-organizada, controlando a estruturação, e, então, verificar se há um diferencial no que diz respeito à eficiência da conversão de CO2, na comparação com a deposição em condições nas quais não há oscilações”, explica.

O campo, no entanto, ainda é novo, e demanda muita pesquisa básica junto às indagações sobre possíveis efeitos tecnológicos. “Embora existam bases matemáticas para o estudo de sistemas fora do equilíbrio, ainda estamos muito longe de conseguir entender profundamente o que acontece. Mas não podemos deixar de investigar, por causa disso, se é possível usar, nas nossas sínteses, esses mecanismos que encontramos em seres vivos e que são tão bem sucedidos”, conclui Nagao.