Na twistrônica, Brasil enxerga além
O grafeno é pop. Devida ou indevidamente alardeado, é de fato imenso o potencial tecnológico do material, por propriedades como leveza, flexibilidade, dureza e capacidade de conduzir eletricidade.
Apesar de toda a agitação, o grafeno nada mais é que uma camada extremamente fina de grafite, com apenas um átomo de espessura. Isolado e caracterizado em detalhes pela primeira vez em 2004, suas propriedades levaram a uma onda de estudos em todo o mundo, incluindo outros materiais bidimensionais e lamelares.
“Materiais com estrutura lamelar como a do grafeno são vários na natureza. A pedra-sabão, das esculturas de Aleijadinho, tem estrutura lamelar, por exemplo. Eles aparecem para nós como tridimensionais porque estão empilhados, como o grafeno no grafite. Quando escrevemos com um lápis, desfolhamos o grafite, marcando nosso papel com grafeno”, explica Ado Jório, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Jório lidera o grupo de pesquisa cujo trabalho com grafeno ocupou, em 17 de fevereiro, um dos lugares mais disputados pela ciência mundial: a capa da revista Nature. A propriedade investigada pelo grupo foi a supercondutividade que aparece quando duas folhas de grafeno são empilhadas e uma delas é rodada em um ângulo de exatamente 1,1 grau.
Para entender o trabalho do grupo brasileiro, façamos uma experiência simples. Coloque as mãos uma sobre a outra, palma com palma. Agora, gire a mão direita ligeiramente, deslizando-a sobre a mão esquerda.
Com as nossas mãos, nada acontece, exceto o deslocamento dos dedos de uma mão em relação aos da outra, visualmente. Porém, quando cientistas fazem a mesma coisa com duas folhas de grafeno, um mundo de novas possibilidades passa a existir.
O grafeno é uma folha plana em que os átomos de carbono estão organizados em rede, em uma estrutura hexagonal. É esta estrutura cristalina – e, consequentemente, as estruturas eletrônica e vibracional – que conferem ao material suas propriedades únicas.
“A estrutura eletrônica e a estrutura vibracional, juntas, definem quase todas as propriedades dos materiais”, situa Jório. “Por que, em um óculos, a luz passa pela lente, mas não pela haste? Por que a blusa que você está usando é maleável, mas a armação do óculos é rígida? Por que a tela do seu celular é sensível ao toque?”, questiona o pesquisador. “A resposta a todas essas questões está na estrutura eletrônica e vibracional de cada material.”
A rotação (twist, em Inglês) da bicamada de grafeno faz com que a rede vire super-rede, na qual os hexágonos menores da rede original se transformam em uma estrutura hexagonal maior (como na imagem). O fenômeno de supercondutividade que resulta desta alteração foi verificado experimentalmente em 2018, ilustrando o surgimento e o potencial de um novo campo científico e tecnológico, a twistrônica.
Ado Jório conta que o termo, twistrônica, é próprio de materiais bidimensionais. Ele explica como, em um material tridimensional – um cubo, por exemplo –, as propriedades são da estrutura no interior deste material. Assim, se juntarmos dois cubos e rodarmos um em relação ao outro, podemos alterar algo nas superfícies que estão em contato, mas não o que está mais longe, no interior. “Mas, quando pegamos um material com um átomo de espessura e encostamos em outro, a influência é muito grande, e a orientação com a qual incluímos, por exemplo, a segunda folha de grafeno, o ângulo, tem um papel fundamental”, explica.
No caso do grafeno, portanto, é a rotação em exatamente 1,1 grau que torna o material supercondutor. Embora isto tenha sido constatado em 2018, ainda não há um modelo teórico para compreender porque o fenômeno acontece, o que é fundamental para controlá-lo e, assim, um dia poder aplicá-lo tecnologicamente em dispositivos de uso cotidiano. É nesta direção, de entender o que acontece, que vem a contribuição do artigo publicado na Nature, cujos resultados só foram possíveis por causa de um equipamento desenvolvido aqui no Brasil: o nanoscópio.
Jório conta que o que explica a supercondutividade – ou seja, a existência de materiais que conduzem eletricidade sem resistência e, assim, sem perdas – é o modo como a partícula eletrônica que percorre o material se acopla com a forma como o material vibra. “O que o nanoscópio trouxe pela primeira vez foi a possibilidade de gerar imagens e caracterizações da estrutura eletrônica e da estrutura vibracional com resolução justamente na escala nanoscópica. Agora, outros pesquisadores têm os dados para desenvolver um modelo teórico para explicar a supercondutividade na bicamada de grafeno rodada, fundamentado nas propriedades eletrônicas e vibracionais que nós mostramos como são”, detalha o pesquisador.
A resolução dos microscópios não permite ver nada menor que um mícron. Assim, o ganho do nanoscópio é justamente a possibilidade de enxergar estruturas e fenômenos que acontecem na ordem dos nanômetros, ou seja, em uma escala mil vezes menor que a do mícron.
A capacidade do nanoscópio está, fundamentalmente, relacionada ao tamanho da antena que faz a análise do material estudado. “O que fizemos foi uma nanoantena com uma tecnologia específica, que nós criamos. Esta nanoantena levou a um funcionamento muito melhor que o de qualquer outro nanoscópio existente no mundo e, assim, a imagens tão informativas, tão ricas, quanto as compartilhadas no artigo”, conta o professor da UFMG.
“Por outro lado, na modelagem matemática, o desafio está no fato das estruturas na super-rede serem grandes e exigirem, por isso, muita capacidade computacional”, acrescenta Jório. “O que o nosso artigo traz de muito valioso é tanto o ganho de resolução, do ponto de vista experimental, quanto o fato dos teóricos que trabalharam conosco terem feito um modelo capaz de calcular estruturas muito grandes, o que nenhum outro existente até agora tinha capacidade de fazer.”
No entanto, apesar da importância dos resultados para a continuidade do desenvolvimento da twistrônica, não é amanhã que teremos bicamadas de grafeno conduzindo energia por aí.
“Do surgimento de uma nova proposta, que é a twistrônica, a conseguirmos dominar a produção desse tipo de material de forma robusta o suficiente para utilização em aplicações tecnológicas, ainda há muito tempo de pesquisa e muito trabalho de engenharia pela frente”, esclarece Ado Jório. “É preciso fazer o material rodar neste ângulo exato, no tamanho que você precisa, dentro do dispositivo que você quer, e de forma estável, ou seja, sem que volte à posição original. Para que esteja no nosso dia a dia, eu estimo um intervalo de 10 a 50 anos. Não sei se 10 ou 50, mas duvido que chegue em 5 anos”, revela o pesquisador. “Mas o nanoscópio é uma realidade tecnológica no presente!”, conclui.
Além do grupo da UFMG, composto por pesquisadores e estudantes de diferentes áreas, também assinam o artigo colaboradores da Universidade Federal da Bahia, do Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia) e de instituições parceiras no Japão, nos Estados Unidos e na Bélgica.